"Beck desfechou um golpe profundamente subversivo na psicanálise enquanto nos garantia que estava apenas tentando expandir as fronteiras da psicoterapia"Em Setembro de 2006, a Lasker Foundation anunciou a concessão a Aaron Beck do Prêmio Lasker de Pesquisa Clínica, o mais prestigioso prêmio na área de Medicina outorgado anualmente nos EUA, um prêmio que veio se somar a inúmeros outros prêmios e homenagens que Beck vem recebendo, ao longo de 40 anos, de prestigiosas instituições ao redor do mundo. Beck, que confrontou o dogma Freudiano nos anos 60, transformou o tratamento da depressão e de outros transtornos mentais com sua técnica cognitiva, estabelecendo um novo limiar para a avaliação da eficácia das psicoterapias e aplicando um rigor em suas pesquisas jamais visto nessa área.Beck nasceu em 1921, em Rhode Island, Nova York. O terceiro filho de imigrantes judeus Ukranianos, era uma criança ativa, até aos 8 anos, quando foi hospitalizado devido a uma infecção severa, após uma cirurgia de uma fratura no braço. Em retrospecto, essa experiência teve um significado decisivo ao restringir suas atividades normais, forçando-o a encontrar ocupações menos ativas, como ler, e levando-o a desenvolver fobia de sangue e ferimentos. Ao enfrentar seus medos irracionais, ele desenvolveu estratégias para controlá-los, das quais, mais tarde, derivaria estratégias para aplicar a outros.Estudante exemplar, destacou-se como editor de vários jornais nas instituições onde estudou. Graduou-se, em 1942, em Inglês e Ciências Políticas pela Brown University, seguindo para a Escola de Medicina da Universidade de Yale, onde completou residência em Neurologia. Embora interessado em Psiquiatria, ressentia-se da falta de objetividade e precisão nessa área. Entretanto, durante sua residência, a exposição à Psiquiatria neutralizou suas resistências, levando-o a obter, em 1953, seu Certificado em Psiquiatria. Sua primeira incursão na área das psicoses, através de um artigo publicado em 1952 sobre um paciente com delírios paranóicos, prenunciaria sua área central de interesse científico a partir de 1996: A aplicação da Terapia Cognitiva à Esquizofrenia.Em 1954, ingressou como Professor de Psiquiatria na Escola de Medicina da Universidade da Pennsylvania, em Filadélfia. Nessa época, a teoria Freudiana estava em franca ascensão na Psiquiatria nos EUA, e, como muitos de seus colegas, Beck completou seu treinamento psicanalítico em 1958. Na década de 70, criou o Centro de Terapia Cognitiva, que dirigiria até 1995, onde ele e um grupo de brilhantes colaboradores e discípulos desenvolveram a TC como um novo sistema de psicoterapia. Em 1995, fundou, com sua filha Judith Beck, o Beck Institute, em um subúrbio de Filadélfia. Em 1996, voltou à Universidade da Pennsylvania, como Professor Emérito, com um grande financiamento de pesquisa do National Institute of Mental Health (NIMH, Instituto Nacional de Saúde Mental) dos EUA, onde hoje estuda a prevenção de suicídio e a aplicação da TC à esquizofrenia.A Emergência da TCA falta de objetividade e precisão que Beck via na Psiquiatria, e mais ainda na Psicanálise, o incomodavam. Embora os analistas propusessem que a neurose se originava de fatores profundos em ação, não conseguiam chegar a um acordo sobre quais eram esses fatores. E a postura passiva do psicanalista lhe parecia, na realidade, uma falta de recursos efetivos. Discretamente, ele começou a se afastar da ortodoxia da Psicanálise, sentando-se frente aos seus pacientes, explorando mais ativamente o diálogo interno pré-consciente que os pacientes relatavam em paralelo à livre-associação. Observando-os, descobriu que esses fluxos de pensamentos, automáticos e involuntários, refletiam elementos fundamentais para a conceituação e tratamento dos transtornos de seus pacientes.Emprestando da Psicologia acadêmica o método científico, Beck conduziu estudos a fim de comprovar os dogmas freudianos, falhando, porém, continuamente em fazê-lo. Seus dados apontavam em diferentes direções. Com respeito à depressão, seus dados demonstraram que, na realidade, a forma negativa do depressivo pensar não era o resultado, mas a causa, de sua depressão. Suas idéias não foram recebidas com facilidade. Colegas psicanalistas as classificaram como superficiais e simplistas. Behavioristas, por sua vez, argumentavam que o foco nos pensamentos era inviável, pois esses não podiam ser objetivamente observados e medidos. E seus colegas psiquiatras biológicos argumentaram que o método era simplesmente uma forma de elevar temporariamente o humor dos pacientes depressivos, não um tratamento específico. No entanto, através de quatro décadas, Beck continua respondendo a seus críticos com um volume considerável de dados empíricos convincentes.Em seus questionamentos e estudos, Beck foi influenciado por filósofos clássicos, pelo construtivismo e pela fenomenologia. Sua intenção expressa era expandir os limites e aprimorar os métodos da psicoterapia. No entanto, em suas inquietações, ele não estava só: Ocorreu, nessa época, uma rara convergência entre psicanalistas e behavioristas em sua insatisfação com os próprios modelos de depressão. Observou-se o afastamento da psicanálise e do behaviorismo radical por vários de seus ilustres adeptos. Entre eles, destacou-se Ellis, cuja terapia racional emotiva (RET), mais tarde denominada de REBT (Terapia racional emotiva comportamental), foi a primeira psicoterapia com clara ênfase cognitiva, tomando os construtos cognitivos como base dos transtornos psicológicos. Seguiram-se Bandura, Mahoney e Meichembaum, behavioristas que, em obras seminais, propuseram os processos cognitivos como cruciais na aquisição e regulação do comportamento, além de estratégias cognitivas e comportamentais para intervenção sobre variáveis cognitivas, inaugurando, dessa forma, a Terapia Cognitivo-Comportamental.Com base em seus estudos empíricos e observações clínicas, Beck propôs o modelo cognitivo da depressão, que, evoluindo em seus aspectos teórico e aplicado, resultaria na proposição de um novo sistema de psicoterapia, que ele denominou de Terapia Cognitiva. Beck declarou que a negatividade do depressivo não era um sintoma, mas desempenhava uma função central na instalação e manutenção da depressão. Cognição, e não emoção, é declarada o fator essencial na depressão, que ele classifica como um transtorno de pensamento e não um transtorno emocional. Propõe ainda a hipótese de vulnerabilidade cognitiva como a pedra fundamental da Terapia Cognitiva, bem como a noção de esquemas cognitivos. Em 1959, abandonou o divã, declarando "Uma vez eliminado o modelo motivacional, e inserido o modelo cognitivo, não vi mais nenhuma necessidade do restante da superestrutura do pensamento psicanalítico". Segundo David Goldberg, "Beck desfechou um golpe profundamente subversivo na psicanálise e quanto nos garantia que estava apenas tentando expandir as fronteiras da psicoterapia".Próximo de seus 86 anos, Beck divide seu tempo entre o Instituto Beck e a Universidade, joga tênis regularmente, adora gravatas borboletas e, definitivamente, não pensa em se aposentar. Seu senso de humor, ainda aguçado, torna sua companhia sempre agradável.O I Congresso Internacional de Esquizofrenia e Terapia Cognitiva representa mais um tributo à pessoa e à obra de Aaron Beck, esse admirável pesquisador e clínico que ousou, mas nunca com arrogância, vivendo continuamente seus dois maiores prazeres: Descobrir coisas novas e incentivar novos talentos a novas conquistas, sempre empenhado em expandir os limites da psicoterapia.
Dra. Ana Maria Serra, PHD
Acesse o website oficial do I Congresso Internacional de Esquizofrenia e Terapia Cognitiva:http://www.congressoesquizofrenia.com.br/